Duas faculdades de cinema. Alguns textos escritos. Dar a cara a tapa? Sim. Preguiça de revisá-los. Cansada de cinema? Talvez.

segunda-feira

O PÂNTANO (entre cinema e pintura)

Em nossa pesquisa, partimos de uma percepção subjetiva e pessoal do filme O Pântano (Lucrecia Martel, Argentina, 2000) como uma pintura, um quadro estático. Tínhamos algumas idéias de caminhos que poderiam nos levar a essa relação: a construção de personagens-objeto (objetos de pintura?) na narrativa; o tratamento do tempo, algo preso, e representado com distância; a criação de uma atmosfera (algo impressionista?); a sensação da visão de uma paisagem, uma imagem repetida, presa em si mesma, natureza-morta.
Buscamos aprofundar essas relações e outras mais, sugeridas pela bibliografia. O resultado (para o bem ou para o mal) ainda se aproxima muito da visão inicial, da sensação que a leitura/recepção do filme nos proporciona. Não se trata aqui, portanto, de dizer o filme como pintura, nem estabelecer relações definitivas sobre o tema. O título, aliás, é sugestivo da dificuldade em estudar as relações (pantanosas) entre a pintura, o cinema e, entre eles (ou não), a fotografia.
A aproximação do filme com outra forma artística, a pintura, foi o que nos permitiu vê-lo mais claramente enquanto perspectiva estética do cinema latino-americano contemporâneo. Pois o nosso interesse reside justamente no afastamento de estruturas literárias (narrativas) ainda tão comuns ao nosso cinema e na aproximação com questões que a pintura e que o cinema dito moderno colocam, cada qual a seu modo, a seu tempo, em seu meio. Portanto, mais uma vez, não se trata de transpor a obra a outro meio, ou afirmá-los iguais – se trata de pensá-los, ambos, justapostos ou não, e de colocar-nos as questões que eles colocam.
O primeiro ponto da relação entre eles é o conceito de “instante pregnante”. Para Lessing, o pintor, que desenvolve seus meios no espaço, não se ocuparia do tempo, apenas da escolha de um momento, de um instante, o mais significativo, o mais “pregnante”, dentro do que ele quer representar. Aumont nos coloca que, no real, esse instante não existe – um acontecimento existe no tempo, sem que seja possível determinar um ou outro momento que signifique o todo mais do que os outros momentos. Ou seja: para ele, é o conjunto de momentos que é significante. Colocamos O Pântano entre essas duas noções: por um lado, como filme – e portanto como seleção de momentos que possam significar algo maior (o que é, basicamente, a seleção realizada por qualquer roteiro), ele pode ser lido como um instante pregnante, isto é, como um momento que condensa outros momentos, algo maior, que na “realidade” se desenvolve de maneira mais solta no tempo. É preciso aqui colocar que, apesar de todos os roteiros realizarem algo parecido, nos parece que neste filme o procedimento se intensifica, talvez porque ele nos obrigue a uma leitura de análise, de des-sintetizar aquele tempo (aquele momento, o filme) e lê-lo ou como um momento político, ou como a subjetividade de um povo, ou ainda como um valor emocional inerente à condição humana. Consideramos esse procedimento bastante semelhante ao que realizamos ao ver (e ler, e interpretar) um quadro. Ou talvez, ainda, porque o filme não parece a junção de vários momentos – ele é tão estático que o sentimos como um momento apenas.
Por outro lado, como cinema moderno (e também “de autor”), ele parece nos negar a importância, a grandiloqüência que um instante pregnante teria. Ele parece juntar imagens esparsas, momentos não-significantes, sem sentido, soltos – diferentemente do cinema clássico com sua progressão dramática e sua doutrina do útil, de mostrar apenas o que faz a história andar. Por esse lado, ele nos parece mais real, menos construído, menos forçado. Não pretendemos, aqui, desfazer o paradoxo dessa leitura que nos leva a ambos os lados. Consideramos que o filme se coloca no limite entre o acidental e o arquetípico, o instante qualquer e o excepcional, a imediatidade e o pitoresco. Consideramos, ainda, que ele coloca cada um dos lados dessas oposições em seu limite, reforçando-os mutuamente, e é aí que reside sua beleza.
Segundo Aumont, a doutrina da pregnância, que foi por séculos adotada na pintura, é finalmente abandonada no Impressionismo. Não mais simbolização, ela é agora revelação, e sua revelação é a sensação; como em O Pântano, a natureza vista através de um temperamento, em imagens da atmosfera (emocional ou não). E também nesse sentido podemos trabalhar a relação do filme com a pregnância, e ao mesmo tempo voltar à nossa percepção inicial (pessoal/emocional) do filme como uma pintura.
É na estrutura narrativa que encontramos outro ponto de relação. A estrutura narrativa, no caso de O Pântano, seria preferível dizer estrutura minimamente narrativa. Já dissemos algo sobre isso anteriormente – pretendemos acrescentar que tal forma de tratamento da narrativa (mínima) nos força a inferir relações entre os personagens desde o início do filme e até o seu final. Nada é claro, explicado, dado – sabemos tanto deles quanto saberíamos dos personagens de um quadro. Mais uma vez, a operação de forçar a imaginação e a interpretação que fazemos ao ver um quadro nos parece bastante similar ao que ocorre na leitura do filme.
É como se os personagens estivessem presos em um quadro estático – tendo e não tendo história para além do filme, tendo e não tendo passado e futuro, etc. Encontramos, na forma narrativa adotada, pregnância de outra espécie, que não no “momento pregnante” – é uma pregnância “do passado”, fazendo parecer que algo vai acontecer e esse algo não acontece. “Do passado” porque a cada momento fazemos como que um reenfoque, e o que poderia acontecer (potência de ação, portanto pregnância) ficou no passado, perdido para sempre. É como uma sucessão de pregnâncias, sempre abortadas. Quadro estático. Mais uma vez, aqui, nos aproximamos do cinema moderno (e da imagem, do espaço, do tempo) e nos afastamos da estrutura narrativa clássica.
Ainda pelo caminho da interpretação a que o filme nos força, chegamos à questão de sua relação com a “realidade”. Mesmo sendo O Pântano um filme dito naturalista (ao menos na imagem), ele nos coloca sempre a questão (e a presença) da operação sobre o real. E é nesse ponto que o aproximamos mais da pintura que da fotografia. Antes, uma ressalva: é preciso suportar, aqui, o uso de termos genéricos como “A fotografia”, “A pintura”, “O cinema”. Sabemos que esses termos só podem existir como tal às custas de uma generalização brutal e grotesca, que desconsidera as várias formas de pintura, as várias pinturas, e assim com os outros termos. Mas, para aproximar uma forma de arte da outra, é preciso proceder dessa forma, ontologicamente – e para tal recorreremos mais uma vez à visão pessoal e subjetiva. Voltando: nos parece que a Fotografia é mais freqüentemente lida como realidade crua, revelada pela lente. No caso da pintura e do cinema, deslocamos a leitura mais facilmente para a existência do pintor e do cineasta (ou do roteirista, que seja). Ou seja: percebemos mais claramente a existência de uma pré-interpretação do tema, de um discurso. Em “A câmara clara”, Roland Barthes apresenta um ponto de vista parecido:

“A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. O discurso combina signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes são ‘quimeras’. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá.” (BARTHES, 1984, p. 115)

“Se a Fotografia não pode ser aprofundada, é por causa de sua força de evidência. Na imagem, o objeto se entrega em bloco e a vista está certa disso – ao contrário do texto ou de outras percepções que me dão o objeto de uma maneira vaga, discutível, e assim me incitam a desconfiar do que julgo ver.” (BARTHES, 1984, p. 157)

Nos parece que dessa forma podemos pensar que as questões colocadas pelo filme (e pelo cinema, quando não preza pela transparência) relacionam-se às questões colocadas pela pintura (aproximando-o dela), e que a fotografia, talvez, se relacione mais diretamente com as questões do documentário, e vice-versa. Mas isso seria tema de outro estudo... O que importa, aqui, é afirmar que a leitura que fazemos do filme é mediada – discurso, signo – e que algo parecido acontece na pintura.
Caímos, inequivocadamente, na visão do cinema como máquina de produzir pontos de vista – e esse é o terceiro ponto da relação. Partimos para dois caminhos: um, este, recém-abordado, o da produção de pontos de vista no sentido de leituras, de discursos. O outro, máquina de produzir pontos de vista no sentido de enquadramentos (e imagens, enquanto tal). Alguém poderia argumentar que a literatura também cria suas imagens (e, portanto, seus quadros) – mas ninguém ousaria dizer que eles têm a evidência física (visual?) de um quadro pintado ou de um filme. No que a literatura é palavra, o cinema e a pintura são imagem – mesmo que todos sejam conceitos. Talvez a literatura apresente, enquanto o cinema representa; isso em termos de imagem.
O que nos interessa é a relação entre esses dois caminhos, ou seja, a co-presença (e co-dependência) do filmado e do que filma, que nos coloca ainda a existência de um “vantage point”, ou o melhor ponto de observação possível (se não o único), o que traduz um controle da situação – controle do quadro, do que se vê, de como se vê, e ainda controle sobre os personagens (tornados personagens-objetos). Esse controle é exercido por alguém, o que pressupõe a existência do autor – tanto no cinema quanto na pintura, como já dissemos antes. O olhar já não é direto, mas mediado por leitura (pela leitura do autor e, posteriormente, pela nossa leitura dentro do possível dado pelo autor).

“Todavia, o cinema tem um poder que, à primeira vista, a Fotografia não tem: a tela (observou Bazin) não é um enquadramento, mas um esconderijo; o personagem que sai dela continua a viver: um ‘campo cego’ duplica incessantemente a visão parcial. Ora, diante dos milhares de fotos, inclusive daquelas que possuem um bom studium, não sinto qualquer campo cego: tudo o que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento. Quando se define a Foto como uma imagem imóvel, isso não quer dizer apenas que os personagens que ela representa não se mexem; isso quer dizer que eles não saem: estão anestesiados e fincados, como borboletas. No entanto, a partir do momento em que há punctum, cria-se (adivinha-se) um campo cego (...).” (BARTHES, 1984, p. 86)

A partir dessa citação pretendemos, mais uma vez, colocar O Pântano no “entre”, na confluência entre dois lados de uma oposição. Usando as categorias aplicadas à fotografia, ele é, por um lado, apenas studium: sem campo cego, estático, morto para além dele mesmo, com personagens anestesiados. Por outro lado, e na mesma medida, punctum: vida, beleza, ferida. Aumont coloca que o quadro do cinema é centrífugo – direciona para fora (e essa seria a vantagem colocada por Bazin, citado por Barthes – enquanto o quadro da pintura é centrípeto – direciona para dentro, prende. No caso de O Pântano, a relação se complica, pois ao mesmo tempo que, enquanto cinema, ele é centrífugo, nossa percepção é a de um quadro centrípeto, mais próximo à pintura, portanto. Ou entre os dois.

2 comentários:

Flor de Bela Alma disse...

Deus do céu, que coisa maravilhosa descobrir esse blog. Preciso saber quem é vc?! Muito tocante e especial isso tudo! Beijo e vai lá no meu blog:
www.flordebelalma.blogspot.com
Beijo: Bianca

Anônimo disse...

Quando fui para a Argentina, ninguém me falou sobre o filme O Pantano... nunca ouvi dele até agora neste blog.
Parece muito interessante a historia que narra, e como fotografo tenho que assisti-la.