Duas faculdades de cinema. Alguns textos escritos. Dar a cara a tapa? Sim. Preguiça de revisá-los. Cansada de cinema? Talvez.

segunda-feira

O PÂNTANO (entre cinema e pintura)

Em nossa pesquisa, partimos de uma percepção subjetiva e pessoal do filme O Pântano (Lucrecia Martel, Argentina, 2000) como uma pintura, um quadro estático. Tínhamos algumas idéias de caminhos que poderiam nos levar a essa relação: a construção de personagens-objeto (objetos de pintura?) na narrativa; o tratamento do tempo, algo preso, e representado com distância; a criação de uma atmosfera (algo impressionista?); a sensação da visão de uma paisagem, uma imagem repetida, presa em si mesma, natureza-morta.
Buscamos aprofundar essas relações e outras mais, sugeridas pela bibliografia. O resultado (para o bem ou para o mal) ainda se aproxima muito da visão inicial, da sensação que a leitura/recepção do filme nos proporciona. Não se trata aqui, portanto, de dizer o filme como pintura, nem estabelecer relações definitivas sobre o tema. O título, aliás, é sugestivo da dificuldade em estudar as relações (pantanosas) entre a pintura, o cinema e, entre eles (ou não), a fotografia.
A aproximação do filme com outra forma artística, a pintura, foi o que nos permitiu vê-lo mais claramente enquanto perspectiva estética do cinema latino-americano contemporâneo. Pois o nosso interesse reside justamente no afastamento de estruturas literárias (narrativas) ainda tão comuns ao nosso cinema e na aproximação com questões que a pintura e que o cinema dito moderno colocam, cada qual a seu modo, a seu tempo, em seu meio. Portanto, mais uma vez, não se trata de transpor a obra a outro meio, ou afirmá-los iguais – se trata de pensá-los, ambos, justapostos ou não, e de colocar-nos as questões que eles colocam.
O primeiro ponto da relação entre eles é o conceito de “instante pregnante”. Para Lessing, o pintor, que desenvolve seus meios no espaço, não se ocuparia do tempo, apenas da escolha de um momento, de um instante, o mais significativo, o mais “pregnante”, dentro do que ele quer representar. Aumont nos coloca que, no real, esse instante não existe – um acontecimento existe no tempo, sem que seja possível determinar um ou outro momento que signifique o todo mais do que os outros momentos. Ou seja: para ele, é o conjunto de momentos que é significante. Colocamos O Pântano entre essas duas noções: por um lado, como filme – e portanto como seleção de momentos que possam significar algo maior (o que é, basicamente, a seleção realizada por qualquer roteiro), ele pode ser lido como um instante pregnante, isto é, como um momento que condensa outros momentos, algo maior, que na “realidade” se desenvolve de maneira mais solta no tempo. É preciso aqui colocar que, apesar de todos os roteiros realizarem algo parecido, nos parece que neste filme o procedimento se intensifica, talvez porque ele nos obrigue a uma leitura de análise, de des-sintetizar aquele tempo (aquele momento, o filme) e lê-lo ou como um momento político, ou como a subjetividade de um povo, ou ainda como um valor emocional inerente à condição humana. Consideramos esse procedimento bastante semelhante ao que realizamos ao ver (e ler, e interpretar) um quadro. Ou talvez, ainda, porque o filme não parece a junção de vários momentos – ele é tão estático que o sentimos como um momento apenas.
Por outro lado, como cinema moderno (e também “de autor”), ele parece nos negar a importância, a grandiloqüência que um instante pregnante teria. Ele parece juntar imagens esparsas, momentos não-significantes, sem sentido, soltos – diferentemente do cinema clássico com sua progressão dramática e sua doutrina do útil, de mostrar apenas o que faz a história andar. Por esse lado, ele nos parece mais real, menos construído, menos forçado. Não pretendemos, aqui, desfazer o paradoxo dessa leitura que nos leva a ambos os lados. Consideramos que o filme se coloca no limite entre o acidental e o arquetípico, o instante qualquer e o excepcional, a imediatidade e o pitoresco. Consideramos, ainda, que ele coloca cada um dos lados dessas oposições em seu limite, reforçando-os mutuamente, e é aí que reside sua beleza.
Segundo Aumont, a doutrina da pregnância, que foi por séculos adotada na pintura, é finalmente abandonada no Impressionismo. Não mais simbolização, ela é agora revelação, e sua revelação é a sensação; como em O Pântano, a natureza vista através de um temperamento, em imagens da atmosfera (emocional ou não). E também nesse sentido podemos trabalhar a relação do filme com a pregnância, e ao mesmo tempo voltar à nossa percepção inicial (pessoal/emocional) do filme como uma pintura.
É na estrutura narrativa que encontramos outro ponto de relação. A estrutura narrativa, no caso de O Pântano, seria preferível dizer estrutura minimamente narrativa. Já dissemos algo sobre isso anteriormente – pretendemos acrescentar que tal forma de tratamento da narrativa (mínima) nos força a inferir relações entre os personagens desde o início do filme e até o seu final. Nada é claro, explicado, dado – sabemos tanto deles quanto saberíamos dos personagens de um quadro. Mais uma vez, a operação de forçar a imaginação e a interpretação que fazemos ao ver um quadro nos parece bastante similar ao que ocorre na leitura do filme.
É como se os personagens estivessem presos em um quadro estático – tendo e não tendo história para além do filme, tendo e não tendo passado e futuro, etc. Encontramos, na forma narrativa adotada, pregnância de outra espécie, que não no “momento pregnante” – é uma pregnância “do passado”, fazendo parecer que algo vai acontecer e esse algo não acontece. “Do passado” porque a cada momento fazemos como que um reenfoque, e o que poderia acontecer (potência de ação, portanto pregnância) ficou no passado, perdido para sempre. É como uma sucessão de pregnâncias, sempre abortadas. Quadro estático. Mais uma vez, aqui, nos aproximamos do cinema moderno (e da imagem, do espaço, do tempo) e nos afastamos da estrutura narrativa clássica.
Ainda pelo caminho da interpretação a que o filme nos força, chegamos à questão de sua relação com a “realidade”. Mesmo sendo O Pântano um filme dito naturalista (ao menos na imagem), ele nos coloca sempre a questão (e a presença) da operação sobre o real. E é nesse ponto que o aproximamos mais da pintura que da fotografia. Antes, uma ressalva: é preciso suportar, aqui, o uso de termos genéricos como “A fotografia”, “A pintura”, “O cinema”. Sabemos que esses termos só podem existir como tal às custas de uma generalização brutal e grotesca, que desconsidera as várias formas de pintura, as várias pinturas, e assim com os outros termos. Mas, para aproximar uma forma de arte da outra, é preciso proceder dessa forma, ontologicamente – e para tal recorreremos mais uma vez à visão pessoal e subjetiva. Voltando: nos parece que a Fotografia é mais freqüentemente lida como realidade crua, revelada pela lente. No caso da pintura e do cinema, deslocamos a leitura mais facilmente para a existência do pintor e do cineasta (ou do roteirista, que seja). Ou seja: percebemos mais claramente a existência de uma pré-interpretação do tema, de um discurso. Em “A câmara clara”, Roland Barthes apresenta um ponto de vista parecido:

“A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. O discurso combina signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes são ‘quimeras’. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá.” (BARTHES, 1984, p. 115)

“Se a Fotografia não pode ser aprofundada, é por causa de sua força de evidência. Na imagem, o objeto se entrega em bloco e a vista está certa disso – ao contrário do texto ou de outras percepções que me dão o objeto de uma maneira vaga, discutível, e assim me incitam a desconfiar do que julgo ver.” (BARTHES, 1984, p. 157)

Nos parece que dessa forma podemos pensar que as questões colocadas pelo filme (e pelo cinema, quando não preza pela transparência) relacionam-se às questões colocadas pela pintura (aproximando-o dela), e que a fotografia, talvez, se relacione mais diretamente com as questões do documentário, e vice-versa. Mas isso seria tema de outro estudo... O que importa, aqui, é afirmar que a leitura que fazemos do filme é mediada – discurso, signo – e que algo parecido acontece na pintura.
Caímos, inequivocadamente, na visão do cinema como máquina de produzir pontos de vista – e esse é o terceiro ponto da relação. Partimos para dois caminhos: um, este, recém-abordado, o da produção de pontos de vista no sentido de leituras, de discursos. O outro, máquina de produzir pontos de vista no sentido de enquadramentos (e imagens, enquanto tal). Alguém poderia argumentar que a literatura também cria suas imagens (e, portanto, seus quadros) – mas ninguém ousaria dizer que eles têm a evidência física (visual?) de um quadro pintado ou de um filme. No que a literatura é palavra, o cinema e a pintura são imagem – mesmo que todos sejam conceitos. Talvez a literatura apresente, enquanto o cinema representa; isso em termos de imagem.
O que nos interessa é a relação entre esses dois caminhos, ou seja, a co-presença (e co-dependência) do filmado e do que filma, que nos coloca ainda a existência de um “vantage point”, ou o melhor ponto de observação possível (se não o único), o que traduz um controle da situação – controle do quadro, do que se vê, de como se vê, e ainda controle sobre os personagens (tornados personagens-objetos). Esse controle é exercido por alguém, o que pressupõe a existência do autor – tanto no cinema quanto na pintura, como já dissemos antes. O olhar já não é direto, mas mediado por leitura (pela leitura do autor e, posteriormente, pela nossa leitura dentro do possível dado pelo autor).

“Todavia, o cinema tem um poder que, à primeira vista, a Fotografia não tem: a tela (observou Bazin) não é um enquadramento, mas um esconderijo; o personagem que sai dela continua a viver: um ‘campo cego’ duplica incessantemente a visão parcial. Ora, diante dos milhares de fotos, inclusive daquelas que possuem um bom studium, não sinto qualquer campo cego: tudo o que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento. Quando se define a Foto como uma imagem imóvel, isso não quer dizer apenas que os personagens que ela representa não se mexem; isso quer dizer que eles não saem: estão anestesiados e fincados, como borboletas. No entanto, a partir do momento em que há punctum, cria-se (adivinha-se) um campo cego (...).” (BARTHES, 1984, p. 86)

A partir dessa citação pretendemos, mais uma vez, colocar O Pântano no “entre”, na confluência entre dois lados de uma oposição. Usando as categorias aplicadas à fotografia, ele é, por um lado, apenas studium: sem campo cego, estático, morto para além dele mesmo, com personagens anestesiados. Por outro lado, e na mesma medida, punctum: vida, beleza, ferida. Aumont coloca que o quadro do cinema é centrífugo – direciona para fora (e essa seria a vantagem colocada por Bazin, citado por Barthes – enquanto o quadro da pintura é centrípeto – direciona para dentro, prende. No caso de O Pântano, a relação se complica, pois ao mesmo tempo que, enquanto cinema, ele é centrífugo, nossa percepção é a de um quadro centrípeto, mais próximo à pintura, portanto. Ou entre os dois.

Ensaio "Além da transparência: o erótico na imagem"

“Julguei compreender que havia uma espécie de laço (de nó) entre a Fotografia, a Loucura e algo cujo nome eu não sabia bem. Eu começava por chamá-lo: o sofrimento de amor.”
BARTHES, Roland.

O filme é Lost in Translation (2003), de Sofia Coppola. A câmera enquadra, da cintura para baixo, Scarlett Johansson deitada na cama, de costas para mim (sim, para mim), vestindo uma calcinha rosa de tecido transparente. O plano silencia e engole. Vejo um pequeno espaço – vácuo – se abrir entre as pernas. Cortinas - abram as cortinas! - abrindo, afastando dois lados simétricos. As nádegas. Nó nas pernas. Um corpo que respira pela pele. Seguir o caminho do risco, do fio... Labirinto. A transparência é fora de foco. Dois corpos interligados, duas mãos dadas - um aperto de mão. Corpo que abafa os ruídos, imune. Ou engole... Desfaz-se, desaparece - evapora (no branco) ou é engolido (no preto)? Buraco negro. O ócio... Uma imagem sem pressão, um corpo sem peso, leve e lento, o auge do erótico (segundo Bernardin, citado por Baudrillard).
O que eu sinto lembra o que Barthes relata sentir por algumas fotografias: pequenos júbilos remetendo a um centro silenciado, um bem erótico ou dilacerante (e não há erotismo que não o seja), um estado que atinge a subjetividade absoluta. Se me refiro ao erótico, é porque através de Bataille o entendo antes de tudo como abertura de ponto de comunicação (e é por isso que digo que ela está de costas para mim). Pois há o sujeito olhado e o sujeito que olha, e a ligação entre eles. Este corpo (como na nudez) torna-se disponível, instaura a comunicação e a troca, ou a possibilidade dela (já que, como imagem, é assustadoramente inerte). Opondo-se ao estado fechado (o descontínuo, o espaço que não é o “entre”, já que vácuo), revela a busca da continuidade, da (ansiada) volta ao todo que fomos. E aí reside seu poder de atração. Pode-se relacionar essa busca de ser o que fomos (essa morte, portanto) com a confusão que Barthes diz operar toda fotografia entre a realidade (“Isso foi”) e a verdade (“É isso!”), e dessa forma ligar a fotografia com o erótico.
O erotismo é relação de atração e pavor com a morte. Pois se queremos ser o todo, devemos deixar de nos ser, de ser nós mesmos. Desejamos essa morte – e a vida para além dela que ela mesma nos promete (união, comunhão) -, mas tememos a perda. E o que nos apavora nos atrai... Assim, o erotismo (nada mais do que essa ânsia) é libertino – abre para a morte. É ao mesmo tempo apego e desapego, desejo de vida e de morte, sanidade e loucura. Barthes fala do ponto louco em que o afeto é fiador do ser; aí estamos.
Para a análise, tomo o plano do filme como uma fotografia. Se, por um lado, como em toda fotografia, há nele o retorno do morto, um espectro, o Todo-Imagem (objetificação) e, como tal, a morte em pessoa; posso falar dessa foto, por outro lado, que, como estado último (absoluto) da subjetividade, ela é a comunicação, o anti-objeto, a continuidade – e supera a morte. A transcende. Fica, aqui, a mesma contradição (e relação insuperável, inseparável) entre os estados contínuo e descontínuo, de sujeito e de objeto. Pode-se fazer uma analogia entre tal processo e a sensação da pós-modernidade: “Viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento.” (VATTIMO, 1992, p. 16). Tal processo de dualidade é pura violência. Assim como o erotismo, sendo, segundo Bataille, a violação contínua da individualidade descontínua. A violência é o que coloca em jogo, é a perturbação no estado.
É o toque – contato com a pele. Barthes fala que há um vínculo umbilical ligando o olhar ao corpo fotografado, no qual a luz torna-se um meio carnal, uma pele que se compartilha. Como autêntica emanação do referente, ela diz respeito a um corpo que existiu, de fato, que esteve ali. “O que se vê no papel é tão seguro quanto o que se toca.” (BARTHES, 1984, p. 130) Mas esse toque é, também, recusa da pele como superfície que separa.
Nesse sentido, opõe-se à imagem que tem Baudrillard:
“O exemplo perfeito foi a mulher pintada de ouro do filme Goldfinger (James Bond): todos os orifícios tapados: eis a maquiagem radical, que faz do seu corpo um falo impecável (o fato de ser de ouro apenas acentua a homologia com a economia política) e que, naturalmente, equivale à morte. A playgirl nua coberta de ouro morrerá por ter encarnado até o limite absurdo o fantasma do erótico. Mas assim ocorre com toda pele na estética funcional, na cultura de massa do corpo. Collants, cintas, meias, luvas, vestidos e roupas ‘coladas ao corpo’, sem contar o bronzeamento: é sempre o leitmotiv da ‘segunda pele’, é sempre a película transparente que vem vitrificar o corpo. (...) Essa vitrificação da nudez deve ser aproximada da função obsessiva de revestimento protetor dos objetos – encerados, plastificados, etc. -, e do trabalho de escovação e de limpeza, que visa mantê-los perpetuamente em estado de limpeza, de impecável abstração – também aí, [trata-se de] barrar sua secreção (pátina, oxidação, poeira), impedi-los de se desfazer e conservá-los numa espécie de imortalidade abstrata.” (BAUDRILLARD, 1996, p. 139-140)”
Pois o corpo que temos é imperfeito, é desprotegido (porque dorme?) é semi-aberto, se entrega, se comunica. A transparência dessa imagem não é a do vidro, em última instância: é porosa (a do tecido da calcinha?). Se toda imagem é transparente, sendo um nada de objeto, anulando-se em função do que dá a ver, essa o é ainda mais, pelo erótico. Não é o caso, por exemplo, da imagem pornográfica, plana (e aí sim, transparente – vidro, redoma) – essa é transcendente, generosa, se espalha e recebe, enfim, se comunica, troca. A foto pornográfica é unária, homogênea: “Nada de mais homogêneo que uma fotografia pornográfica. É sempre uma foto ingênua, sem intenção e sem cálculo. Como uma vitrine que mostrasse, iluminada, apenas uma única jóia, ela é inteiramente constituída pela apresentação de uma única coisa, o sexo: jamais objeto segundo, intempestivo, que venha ocultar pela metade, retardar ou distrair.” (BARTHES, 1984, p. 89-91). Não há, nela, punctum – é a imagem vazia, banalizada, sem extracampo, e nesse sentido pode-se pensar que o hábito da imagem em nossa sociedade (vindo do mercado, do consumo, do espetáculo) seja como o hábito na relação amorosa - o qual, segundo Bataille, é uma nova forma de descontinuidade. Ou seja, nega o erotismo e, ao tornar objeto, nega a subjetividade. Nessa “pornografia da imagem”, o corpo (objeto qualquer), “(...) Destinado a produzir solicitude, encontra-se votado a produzir e a reproduzir simultaneamente a distância, a não-comunicação, a opacidade e a atrocidade.” (BAUDRILLARD, 2003, p. 172). É mal-estar disfarçado de conforto, como a domesticação. Afinal, “(...) custa-nos a conceber esta oscilação [entre pertença e desenraizamento] como liberdade: a nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e tranqüilizadores ao mesmo tempo, continua ainda radicada em nós, como indivíduos e como sociedade.” (VATTIMO, 1992, p. 16-17). Por oscilação entenda-se, aqui, o estado erótico, a violação contínua. E nesse sentido, ainda, podemos indagar se não é a febre da imagem, do espetáculo, uma representação errônea (ou infeliz, ao menos) para a contemporaneidade, já que é o processo do erotismo na imagem (erótica ou não) que é análogo à subjetividade pós-moderna e poderia, portanto, organizar nossa experiência, mediar nossas subjetividades.
Pode-se, então, pensar a imagem erótica (a do punctum) como um quarto nível do erotismo, segundo a classificação de Bataille. Os outros são o erotismo dos corpos, dos corações e sagrado. Pois há, sim, nela, troca simbólica, consumo da identidade - o sujeito é colocado em jogo em sua posse e despossessão. É a nostalgia do contínuo que comanda todas as formas do erotismo, e ela está presente na comunicação que a imagem erótica instaura. Ou, ainda, pode-se pensar que a imagem erótica une as outras três formas do erotismo (pois há nela o corpo – sexo - , a paixão e o sagrado - sacrifício)... E isso o torna ainda mais necessário, como o são (e o foram, nas sociedades arcaicas) os outros níveis, ao liberar o sujeito permitindo sua busca pelo contínuo, sua precipitação no Todo, na comunicação absoluta e, portanto, pertencimento. Ser.


Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo, Perspectiva, 2000.

__________________. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2003.

__________________. A troca simbólica e a morte. Tradução Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo, Loyola, 1996.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.

_________________. História do Olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Cãodução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1997.

VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente. Tradução de Hossein Shooja e Isabel Santos. Lisboa, Relógio D’Água, 1992.

Filmografia

Encontros e Desencontros (Lost in Translation, EUA, 2003). Direção: Sofia Coppola. Roteiro: Sofia Coppola. Produção: Francis Ford Coppola, Sofia Coppola, et alli. Fotografia: Lance Acord. Montagem: Sarah Flack. Com Scarlett Johansson, Bill Murray et alli.

Análise da Construção dos Personagens no filme “Não por Acaso” (2007), de Philippe Barcinski

A impressão geral do filme, é preciso dizer de início, é a de um grande curta-metragem. No sentido de que as situações e os personagens não parecem bem desenvolvidos, parecem segurados por muito tempo na mesma. Os conflitos e as situações apresentados caberiam em um curta-metragem, e ainda ganhariam força.
Dito isso, procedamos à análise de cada personagem em particular. De longe, o mais complexo e desenvolvido deles é Ênio (Leonardo Medeiros). Sua apresentação se dá da seguinte forma: inicialmente o vemos no trabalho, imaginamos sua rotina, seu dia-a-dia (sempre igual – repetição), como se relaciona com os colegas (ou melhor, como quase não se relaciona), e temos um primeiro momento quase lírico do que parece uma crise interna do personagem, uma grande angústia (plano longo dele, sentado, olhando para o nada, pensando em sabe-se-lá-o-quê). Em seguida, surgem quase ao mesmo tempo dois aspectos de sua backstory: o fato de ele ter tido um futuro promissor (que surge no diálogo sobre o texto da monografia) e de como ele tenta parecer ter aceitado o rumo de sua vida; e uma mulher por quem ele se interessa, quer saber como está, perguntando para o chefe. Entendemos aqui que ele foi separado dela, por alguma circunstância, e que não quer ou não pode retomar contato.
A mulher acaba indo atrás dele, por intermédio do chefe – confirmando o status dele de personagem-objeto – e eles marcam um encontro. Ela fala que a filha deles quer conhecê-lo. Esse será basicamente o rumo do personagem, depois do acontecimento que une as histórias, o acidente: conhecer a filha, entender-se com ela e consigo mesmo, no sentido de relacionar-se com outrém. Aliás, é pelo acidente que chegamos a um terceiro nível de conhecimento/apresentação do personagem: a emoção (o sentimento, a dor, o choro).
Em seu processo de aproximação com a filha, mais uma vez ele é objeto: ela a procura (encontrando-o mal-vestido, sem comida, em uma casa quase vazia), ela fala, ela convida, etc. Ele apenas reage, principalmente negativamente, fugindo. A não ser no final, quando ele percebe que precisa estar com a filha, e impede a viagem dela ao exterior. Mostra-se, então, ativo, sujeito (correndo riscos), e também metódico e desmedido ao mesmo tempo: consegue isso do jeito mais difícil – parando uma parte da cidade. O principal problema nessa construção é que quando ele é objeto, ele é muito e completamente objeto, assim como quando ele se torna sujeito ele é um grande sujeito, capaz de algo assim.
Intercaladamente a essa história, somos apresentados a Teresa (Branca Messina) da seguinte forma: primeiro em seu relacionamento (acordando com um homem, não sabemos bem quem é, qual o nível de relacionamento, mas vemos carinho), depois vemos sua seriedade e pressa em ir a um compromisso (que imaginamos importante), sabemos de seus planos para o futuro (morar com o namorado) e, então, entra sua backstory – sua relação complicada com a mãe, suas várias mudanças de plano quanto ao futuro e o quanto isso a afeta, chegando a discutir com o namorado como se o que a mãe falasse fosse verdade. Vemos depois que isso é apenas um momento, que ela não pensa daquela forma, quando ela chega em casa e ao ver que o namorado acomodou seus tão queridos livros, ela “se derrete”. O acidente volta a interferir, e ela morre.
Percebemos, então, que sua história na verdade era a história de seu namorado, Pedro (Rodrigo Santoro). Já o conhecemos: seu amor por Teresa, pelo trabalho, pelo pai, pelo trabalho que foi do pai, o defeito que Teresa via nele – o estar parado, viver numa bolha, conformar-se, sem ir atrás, sem competir. Quando ele torna-se o foco da história, entramos diretamente em suas dores, seus relacionamentos – com a morte de Teresa, com a sogra; e isso no mesmo momento do filme em que Ênio lida com seu relacionamento com a filha. Ambos mostram-se extremamente metódicos, com a diferença que Ênio, em seu final redentor, parecerá “livre” de tal fardo (ao menos é o que parece dizer o filme), enquanto até o final Pedro será metódico – assustando Lúcia, inclusive, e depois a reconquistando da mesma forma (metódica: o café da manhã levado até a porta dela e cuidadosamente posicionado) - e, talvez por isso, sua história pareça menos interessante que a de Ênio, no sentido em que, apesar de tomar forma de redenção, de mudança, pouco de substancial aconteça a Pedro.
Pode-se pensar (apenas supor, já que o filme deixa sua história – e suas ações - “em aberto”, sem explicação) que o que ele tenta com Lúcia é o que ele faz com sua vida, seguindo o caminho do pai: manter tudo na mesma, numa ânsia de controle. Então ele tenta apenas substituir uma mulher pela outra, mantendo sua rotina e tudo o mais. O que poderia ser sua redenção é o fato de ele perceber isso, ir atrás de Lúcia, fazendo algo diferente por ela, e sentir-se bem, andando pela rua, livre, sorrindo. Mas, como já disse, não sabemos, não sentimos, não vemos. E, se isso fosse mais desenvolvido, sua história certamente passaria a ser a mais interessante do filme.
Juntando-se à história de Pedro encontramos Lúcia (Letícia Sabatella), definitivamente o terço menos expressivo do filme. Somos apresentados a ela gritando, mandando em sua assistente – como uma mulher de negócios ocupadíssima -, mas algo não bate: o corpo delicado, a voz suave, quase infantil, não sei. Aliás, nenhum trabalho parece “de verdade” no filme. Mas, voltando: ela também, teoricamente, passa por uma transformação – deixa sua concorrida agenda de lado e passa horas com Pedro (a quem tinha tratado mal no início, como se fosse um zé-ninguém e, além disso, como se ele fosse obrigado a servi-la); mas essa “transformação” não se realiza, não satisfaz, parece encurralada no final do filme sem tempo para acontecer. Ou seja: parece um personagem de curta-metragem, mais sintético, ou então que não chegamos a conhecer – apenas supor.
Algumas falas de alguns personagens são o que o filme deixa de mais interessante, juntamente com sua estética, seu experimentalismo formal. Principalmente as falas sobre o destino, ou sobre o acaso. Porém, os diálogos de apresentação dos personagens são fracos. Na primeira seqüência, na cena em que Ênio conversa com Nogueira, seu chefe, temos um diálogo inverossímil que serve para dar ao espectador informações sobre o personagem e a situação, jogadas por completo, como se os personagens já não estivessem vivenciando aquilo (a negociação com a Alemanha, o rumo da vida de Ênio). Além disso, aqui e durante a maior parte do filme podemos perceber uma dureza no diálogo, um formalismo exagerado, com frases completas, sem que um personagem interrompa o outro ou fale algo pouco compreensível, ou até banal. A partir ainda dessa cena, podemos perceber o que seria um furo de roteiro: Nogueira pede para Ênio que ele escreva um texto. Em outra cena, Ênio diz não tê-lo escrito (apesar de vermos que o fez), e Nogueira então diz que há mais tempo para isso. Nunca mais teremos informações sobre isso – então qual era a importância do texto? Apenas nos dar informações sobre o personagem? Algo se perde, aqui. O mesmo acontece em outra cena, quando Nogueira diz para Ênio que vai obrigá-lo a tirar férias. O que acontece, em seguida? Ênio continua trabalhando, e não se trata mais do assunto.
A cena em que Teresa encontra Lúcia para que esta assine o contrato de locação apresenta problemas semelhantes, além de uma inverossimilhança absurda. Quando Lúcia pergunta por quê Teresa está saindo do apartamento, esta se apressa em dizer que não tem nada a ver com o imóvel, como uma boa vendedora que quer mais é fechar o negócio. Porém, logo em seguida, Teresa sugere para Lúcia que o apartamento seria muito grande para se morar sozinha nele. Dois problemas: ela também morava ali sozinha; e se ela quer mesmo alugar o apartamento, não colocaria essa questão. Entendemos disso que o importante era nos dar um perfil de Lúcia, como solitária ou o que seja, mas para isso esqueceu-se da outra personagem, que não poderia dizer aquilo. Além disso, a própria situação, a negociação, é esquisita: qualquer pessoa que fosse alugar o apartamento de uma garota, e sua mãe aparecesse e fosse contra, pensaria duas vezes, esperaria mais um pouco, não assinaria o contrato, ou então negociaria diretamente com a mãe. Lúcia, uma “mulher de negócios”, não o faz. Pede confirmação visual para Teresa (uma intimidade estranha) e assina.
Ou seja: apesar das qualidades de concepção e estética, há sempre algo de falso – uma pausa em uma frase que percebemos como colocada, e não natural; um ambiente que não parece existir, personagens dos quais não sabemos muito e que ainda assim apresentam contradições na construção... Como no caso de Ênio: quanto ganha um profissional como ele? Pós-graduado, procurando apartamentos que parecem caros, e ao mesmo tempo dirigindo um carro velho e não tendo comida em casa? Outra coisa que enfraquece os personagens é o uso da música no filme. Pleonástica, exagerada, ela enfraquece as dores, os amores, os silêncios, o interno e o externo.
O interesse que tenho na concepção se dá principalmente em um cuidado na estrutura e na estética, em uma construção coerente e interessante que, por exemplo, fala o tempo todo de fluidos, movimento, mudança, caminho. A repetição do elemento fluido, por exemplo, é interessante. A dinâmica dos fluidos, o vazamento que alaga o apartamento, as claras dos ovos. O uso desses elementos, assim como a comparação (analogia) entre trânsito, jogo e vida, dá bastante força ao filme, seu argumento e seu discurso.