Duas faculdades de cinema. Alguns textos escritos. Dar a cara a tapa? Sim. Preguiça de revisá-los. Cansada de cinema? Talvez.

segunda-feira

Análise da Construção dos Personagens no filme “Não por Acaso” (2007), de Philippe Barcinski

A impressão geral do filme, é preciso dizer de início, é a de um grande curta-metragem. No sentido de que as situações e os personagens não parecem bem desenvolvidos, parecem segurados por muito tempo na mesma. Os conflitos e as situações apresentados caberiam em um curta-metragem, e ainda ganhariam força.
Dito isso, procedamos à análise de cada personagem em particular. De longe, o mais complexo e desenvolvido deles é Ênio (Leonardo Medeiros). Sua apresentação se dá da seguinte forma: inicialmente o vemos no trabalho, imaginamos sua rotina, seu dia-a-dia (sempre igual – repetição), como se relaciona com os colegas (ou melhor, como quase não se relaciona), e temos um primeiro momento quase lírico do que parece uma crise interna do personagem, uma grande angústia (plano longo dele, sentado, olhando para o nada, pensando em sabe-se-lá-o-quê). Em seguida, surgem quase ao mesmo tempo dois aspectos de sua backstory: o fato de ele ter tido um futuro promissor (que surge no diálogo sobre o texto da monografia) e de como ele tenta parecer ter aceitado o rumo de sua vida; e uma mulher por quem ele se interessa, quer saber como está, perguntando para o chefe. Entendemos aqui que ele foi separado dela, por alguma circunstância, e que não quer ou não pode retomar contato.
A mulher acaba indo atrás dele, por intermédio do chefe – confirmando o status dele de personagem-objeto – e eles marcam um encontro. Ela fala que a filha deles quer conhecê-lo. Esse será basicamente o rumo do personagem, depois do acontecimento que une as histórias, o acidente: conhecer a filha, entender-se com ela e consigo mesmo, no sentido de relacionar-se com outrém. Aliás, é pelo acidente que chegamos a um terceiro nível de conhecimento/apresentação do personagem: a emoção (o sentimento, a dor, o choro).
Em seu processo de aproximação com a filha, mais uma vez ele é objeto: ela a procura (encontrando-o mal-vestido, sem comida, em uma casa quase vazia), ela fala, ela convida, etc. Ele apenas reage, principalmente negativamente, fugindo. A não ser no final, quando ele percebe que precisa estar com a filha, e impede a viagem dela ao exterior. Mostra-se, então, ativo, sujeito (correndo riscos), e também metódico e desmedido ao mesmo tempo: consegue isso do jeito mais difícil – parando uma parte da cidade. O principal problema nessa construção é que quando ele é objeto, ele é muito e completamente objeto, assim como quando ele se torna sujeito ele é um grande sujeito, capaz de algo assim.
Intercaladamente a essa história, somos apresentados a Teresa (Branca Messina) da seguinte forma: primeiro em seu relacionamento (acordando com um homem, não sabemos bem quem é, qual o nível de relacionamento, mas vemos carinho), depois vemos sua seriedade e pressa em ir a um compromisso (que imaginamos importante), sabemos de seus planos para o futuro (morar com o namorado) e, então, entra sua backstory – sua relação complicada com a mãe, suas várias mudanças de plano quanto ao futuro e o quanto isso a afeta, chegando a discutir com o namorado como se o que a mãe falasse fosse verdade. Vemos depois que isso é apenas um momento, que ela não pensa daquela forma, quando ela chega em casa e ao ver que o namorado acomodou seus tão queridos livros, ela “se derrete”. O acidente volta a interferir, e ela morre.
Percebemos, então, que sua história na verdade era a história de seu namorado, Pedro (Rodrigo Santoro). Já o conhecemos: seu amor por Teresa, pelo trabalho, pelo pai, pelo trabalho que foi do pai, o defeito que Teresa via nele – o estar parado, viver numa bolha, conformar-se, sem ir atrás, sem competir. Quando ele torna-se o foco da história, entramos diretamente em suas dores, seus relacionamentos – com a morte de Teresa, com a sogra; e isso no mesmo momento do filme em que Ênio lida com seu relacionamento com a filha. Ambos mostram-se extremamente metódicos, com a diferença que Ênio, em seu final redentor, parecerá “livre” de tal fardo (ao menos é o que parece dizer o filme), enquanto até o final Pedro será metódico – assustando Lúcia, inclusive, e depois a reconquistando da mesma forma (metódica: o café da manhã levado até a porta dela e cuidadosamente posicionado) - e, talvez por isso, sua história pareça menos interessante que a de Ênio, no sentido em que, apesar de tomar forma de redenção, de mudança, pouco de substancial aconteça a Pedro.
Pode-se pensar (apenas supor, já que o filme deixa sua história – e suas ações - “em aberto”, sem explicação) que o que ele tenta com Lúcia é o que ele faz com sua vida, seguindo o caminho do pai: manter tudo na mesma, numa ânsia de controle. Então ele tenta apenas substituir uma mulher pela outra, mantendo sua rotina e tudo o mais. O que poderia ser sua redenção é o fato de ele perceber isso, ir atrás de Lúcia, fazendo algo diferente por ela, e sentir-se bem, andando pela rua, livre, sorrindo. Mas, como já disse, não sabemos, não sentimos, não vemos. E, se isso fosse mais desenvolvido, sua história certamente passaria a ser a mais interessante do filme.
Juntando-se à história de Pedro encontramos Lúcia (Letícia Sabatella), definitivamente o terço menos expressivo do filme. Somos apresentados a ela gritando, mandando em sua assistente – como uma mulher de negócios ocupadíssima -, mas algo não bate: o corpo delicado, a voz suave, quase infantil, não sei. Aliás, nenhum trabalho parece “de verdade” no filme. Mas, voltando: ela também, teoricamente, passa por uma transformação – deixa sua concorrida agenda de lado e passa horas com Pedro (a quem tinha tratado mal no início, como se fosse um zé-ninguém e, além disso, como se ele fosse obrigado a servi-la); mas essa “transformação” não se realiza, não satisfaz, parece encurralada no final do filme sem tempo para acontecer. Ou seja: parece um personagem de curta-metragem, mais sintético, ou então que não chegamos a conhecer – apenas supor.
Algumas falas de alguns personagens são o que o filme deixa de mais interessante, juntamente com sua estética, seu experimentalismo formal. Principalmente as falas sobre o destino, ou sobre o acaso. Porém, os diálogos de apresentação dos personagens são fracos. Na primeira seqüência, na cena em que Ênio conversa com Nogueira, seu chefe, temos um diálogo inverossímil que serve para dar ao espectador informações sobre o personagem e a situação, jogadas por completo, como se os personagens já não estivessem vivenciando aquilo (a negociação com a Alemanha, o rumo da vida de Ênio). Além disso, aqui e durante a maior parte do filme podemos perceber uma dureza no diálogo, um formalismo exagerado, com frases completas, sem que um personagem interrompa o outro ou fale algo pouco compreensível, ou até banal. A partir ainda dessa cena, podemos perceber o que seria um furo de roteiro: Nogueira pede para Ênio que ele escreva um texto. Em outra cena, Ênio diz não tê-lo escrito (apesar de vermos que o fez), e Nogueira então diz que há mais tempo para isso. Nunca mais teremos informações sobre isso – então qual era a importância do texto? Apenas nos dar informações sobre o personagem? Algo se perde, aqui. O mesmo acontece em outra cena, quando Nogueira diz para Ênio que vai obrigá-lo a tirar férias. O que acontece, em seguida? Ênio continua trabalhando, e não se trata mais do assunto.
A cena em que Teresa encontra Lúcia para que esta assine o contrato de locação apresenta problemas semelhantes, além de uma inverossimilhança absurda. Quando Lúcia pergunta por quê Teresa está saindo do apartamento, esta se apressa em dizer que não tem nada a ver com o imóvel, como uma boa vendedora que quer mais é fechar o negócio. Porém, logo em seguida, Teresa sugere para Lúcia que o apartamento seria muito grande para se morar sozinha nele. Dois problemas: ela também morava ali sozinha; e se ela quer mesmo alugar o apartamento, não colocaria essa questão. Entendemos disso que o importante era nos dar um perfil de Lúcia, como solitária ou o que seja, mas para isso esqueceu-se da outra personagem, que não poderia dizer aquilo. Além disso, a própria situação, a negociação, é esquisita: qualquer pessoa que fosse alugar o apartamento de uma garota, e sua mãe aparecesse e fosse contra, pensaria duas vezes, esperaria mais um pouco, não assinaria o contrato, ou então negociaria diretamente com a mãe. Lúcia, uma “mulher de negócios”, não o faz. Pede confirmação visual para Teresa (uma intimidade estranha) e assina.
Ou seja: apesar das qualidades de concepção e estética, há sempre algo de falso – uma pausa em uma frase que percebemos como colocada, e não natural; um ambiente que não parece existir, personagens dos quais não sabemos muito e que ainda assim apresentam contradições na construção... Como no caso de Ênio: quanto ganha um profissional como ele? Pós-graduado, procurando apartamentos que parecem caros, e ao mesmo tempo dirigindo um carro velho e não tendo comida em casa? Outra coisa que enfraquece os personagens é o uso da música no filme. Pleonástica, exagerada, ela enfraquece as dores, os amores, os silêncios, o interno e o externo.
O interesse que tenho na concepção se dá principalmente em um cuidado na estrutura e na estética, em uma construção coerente e interessante que, por exemplo, fala o tempo todo de fluidos, movimento, mudança, caminho. A repetição do elemento fluido, por exemplo, é interessante. A dinâmica dos fluidos, o vazamento que alaga o apartamento, as claras dos ovos. O uso desses elementos, assim como a comparação (analogia) entre trânsito, jogo e vida, dá bastante força ao filme, seu argumento e seu discurso.

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