Duas faculdades de cinema. Alguns textos escritos. Dar a cara a tapa? Sim. Preguiça de revisá-los. Cansada de cinema? Talvez.

segunda-feira

Ensaio "Além da transparência: o erótico na imagem"

“Julguei compreender que havia uma espécie de laço (de nó) entre a Fotografia, a Loucura e algo cujo nome eu não sabia bem. Eu começava por chamá-lo: o sofrimento de amor.”
BARTHES, Roland.

O filme é Lost in Translation (2003), de Sofia Coppola. A câmera enquadra, da cintura para baixo, Scarlett Johansson deitada na cama, de costas para mim (sim, para mim), vestindo uma calcinha rosa de tecido transparente. O plano silencia e engole. Vejo um pequeno espaço – vácuo – se abrir entre as pernas. Cortinas - abram as cortinas! - abrindo, afastando dois lados simétricos. As nádegas. Nó nas pernas. Um corpo que respira pela pele. Seguir o caminho do risco, do fio... Labirinto. A transparência é fora de foco. Dois corpos interligados, duas mãos dadas - um aperto de mão. Corpo que abafa os ruídos, imune. Ou engole... Desfaz-se, desaparece - evapora (no branco) ou é engolido (no preto)? Buraco negro. O ócio... Uma imagem sem pressão, um corpo sem peso, leve e lento, o auge do erótico (segundo Bernardin, citado por Baudrillard).
O que eu sinto lembra o que Barthes relata sentir por algumas fotografias: pequenos júbilos remetendo a um centro silenciado, um bem erótico ou dilacerante (e não há erotismo que não o seja), um estado que atinge a subjetividade absoluta. Se me refiro ao erótico, é porque através de Bataille o entendo antes de tudo como abertura de ponto de comunicação (e é por isso que digo que ela está de costas para mim). Pois há o sujeito olhado e o sujeito que olha, e a ligação entre eles. Este corpo (como na nudez) torna-se disponível, instaura a comunicação e a troca, ou a possibilidade dela (já que, como imagem, é assustadoramente inerte). Opondo-se ao estado fechado (o descontínuo, o espaço que não é o “entre”, já que vácuo), revela a busca da continuidade, da (ansiada) volta ao todo que fomos. E aí reside seu poder de atração. Pode-se relacionar essa busca de ser o que fomos (essa morte, portanto) com a confusão que Barthes diz operar toda fotografia entre a realidade (“Isso foi”) e a verdade (“É isso!”), e dessa forma ligar a fotografia com o erótico.
O erotismo é relação de atração e pavor com a morte. Pois se queremos ser o todo, devemos deixar de nos ser, de ser nós mesmos. Desejamos essa morte – e a vida para além dela que ela mesma nos promete (união, comunhão) -, mas tememos a perda. E o que nos apavora nos atrai... Assim, o erotismo (nada mais do que essa ânsia) é libertino – abre para a morte. É ao mesmo tempo apego e desapego, desejo de vida e de morte, sanidade e loucura. Barthes fala do ponto louco em que o afeto é fiador do ser; aí estamos.
Para a análise, tomo o plano do filme como uma fotografia. Se, por um lado, como em toda fotografia, há nele o retorno do morto, um espectro, o Todo-Imagem (objetificação) e, como tal, a morte em pessoa; posso falar dessa foto, por outro lado, que, como estado último (absoluto) da subjetividade, ela é a comunicação, o anti-objeto, a continuidade – e supera a morte. A transcende. Fica, aqui, a mesma contradição (e relação insuperável, inseparável) entre os estados contínuo e descontínuo, de sujeito e de objeto. Pode-se fazer uma analogia entre tal processo e a sensação da pós-modernidade: “Viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento.” (VATTIMO, 1992, p. 16). Tal processo de dualidade é pura violência. Assim como o erotismo, sendo, segundo Bataille, a violação contínua da individualidade descontínua. A violência é o que coloca em jogo, é a perturbação no estado.
É o toque – contato com a pele. Barthes fala que há um vínculo umbilical ligando o olhar ao corpo fotografado, no qual a luz torna-se um meio carnal, uma pele que se compartilha. Como autêntica emanação do referente, ela diz respeito a um corpo que existiu, de fato, que esteve ali. “O que se vê no papel é tão seguro quanto o que se toca.” (BARTHES, 1984, p. 130) Mas esse toque é, também, recusa da pele como superfície que separa.
Nesse sentido, opõe-se à imagem que tem Baudrillard:
“O exemplo perfeito foi a mulher pintada de ouro do filme Goldfinger (James Bond): todos os orifícios tapados: eis a maquiagem radical, que faz do seu corpo um falo impecável (o fato de ser de ouro apenas acentua a homologia com a economia política) e que, naturalmente, equivale à morte. A playgirl nua coberta de ouro morrerá por ter encarnado até o limite absurdo o fantasma do erótico. Mas assim ocorre com toda pele na estética funcional, na cultura de massa do corpo. Collants, cintas, meias, luvas, vestidos e roupas ‘coladas ao corpo’, sem contar o bronzeamento: é sempre o leitmotiv da ‘segunda pele’, é sempre a película transparente que vem vitrificar o corpo. (...) Essa vitrificação da nudez deve ser aproximada da função obsessiva de revestimento protetor dos objetos – encerados, plastificados, etc. -, e do trabalho de escovação e de limpeza, que visa mantê-los perpetuamente em estado de limpeza, de impecável abstração – também aí, [trata-se de] barrar sua secreção (pátina, oxidação, poeira), impedi-los de se desfazer e conservá-los numa espécie de imortalidade abstrata.” (BAUDRILLARD, 1996, p. 139-140)”
Pois o corpo que temos é imperfeito, é desprotegido (porque dorme?) é semi-aberto, se entrega, se comunica. A transparência dessa imagem não é a do vidro, em última instância: é porosa (a do tecido da calcinha?). Se toda imagem é transparente, sendo um nada de objeto, anulando-se em função do que dá a ver, essa o é ainda mais, pelo erótico. Não é o caso, por exemplo, da imagem pornográfica, plana (e aí sim, transparente – vidro, redoma) – essa é transcendente, generosa, se espalha e recebe, enfim, se comunica, troca. A foto pornográfica é unária, homogênea: “Nada de mais homogêneo que uma fotografia pornográfica. É sempre uma foto ingênua, sem intenção e sem cálculo. Como uma vitrine que mostrasse, iluminada, apenas uma única jóia, ela é inteiramente constituída pela apresentação de uma única coisa, o sexo: jamais objeto segundo, intempestivo, que venha ocultar pela metade, retardar ou distrair.” (BARTHES, 1984, p. 89-91). Não há, nela, punctum – é a imagem vazia, banalizada, sem extracampo, e nesse sentido pode-se pensar que o hábito da imagem em nossa sociedade (vindo do mercado, do consumo, do espetáculo) seja como o hábito na relação amorosa - o qual, segundo Bataille, é uma nova forma de descontinuidade. Ou seja, nega o erotismo e, ao tornar objeto, nega a subjetividade. Nessa “pornografia da imagem”, o corpo (objeto qualquer), “(...) Destinado a produzir solicitude, encontra-se votado a produzir e a reproduzir simultaneamente a distância, a não-comunicação, a opacidade e a atrocidade.” (BAUDRILLARD, 2003, p. 172). É mal-estar disfarçado de conforto, como a domesticação. Afinal, “(...) custa-nos a conceber esta oscilação [entre pertença e desenraizamento] como liberdade: a nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e tranqüilizadores ao mesmo tempo, continua ainda radicada em nós, como indivíduos e como sociedade.” (VATTIMO, 1992, p. 16-17). Por oscilação entenda-se, aqui, o estado erótico, a violação contínua. E nesse sentido, ainda, podemos indagar se não é a febre da imagem, do espetáculo, uma representação errônea (ou infeliz, ao menos) para a contemporaneidade, já que é o processo do erotismo na imagem (erótica ou não) que é análogo à subjetividade pós-moderna e poderia, portanto, organizar nossa experiência, mediar nossas subjetividades.
Pode-se, então, pensar a imagem erótica (a do punctum) como um quarto nível do erotismo, segundo a classificação de Bataille. Os outros são o erotismo dos corpos, dos corações e sagrado. Pois há, sim, nela, troca simbólica, consumo da identidade - o sujeito é colocado em jogo em sua posse e despossessão. É a nostalgia do contínuo que comanda todas as formas do erotismo, e ela está presente na comunicação que a imagem erótica instaura. Ou, ainda, pode-se pensar que a imagem erótica une as outras três formas do erotismo (pois há nela o corpo – sexo - , a paixão e o sagrado - sacrifício)... E isso o torna ainda mais necessário, como o são (e o foram, nas sociedades arcaicas) os outros níveis, ao liberar o sujeito permitindo sua busca pelo contínuo, sua precipitação no Todo, na comunicação absoluta e, portanto, pertencimento. Ser.


Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo, Perspectiva, 2000.

__________________. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2003.

__________________. A troca simbólica e a morte. Tradução Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo, Loyola, 1996.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.

_________________. História do Olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Cãodução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1997.

VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente. Tradução de Hossein Shooja e Isabel Santos. Lisboa, Relógio D’Água, 1992.

Filmografia

Encontros e Desencontros (Lost in Translation, EUA, 2003). Direção: Sofia Coppola. Roteiro: Sofia Coppola. Produção: Francis Ford Coppola, Sofia Coppola, et alli. Fotografia: Lance Acord. Montagem: Sarah Flack. Com Scarlett Johansson, Bill Murray et alli.

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