Duas faculdades de cinema. Alguns textos escritos. Dar a cara a tapa? Sim. Preguiça de revisá-los. Cansada de cinema? Talvez.

terça-feira

2006-1. 3a fase. Roteiro e Dramaturgia.

Análise de roteiro
Filme: La Niña Santa (Argentina, 2004), com roteiro e direção de Lucrecia Martel.

A estrutura de A Menina Santa não é clássica, apontando para uma economia dramática e para a desdramatização. Dito isto, é possível encontrar na narrativa momentos de aproximação e de afastamento dos preceitos da dramaturgia clássica (primeiramente apontados e normatizados por Aristóteles e apropriados/difundidos principalmente pelo cinema clássico/hegemônico hollywoodiano).
Em primeiro lugar, não se trata de um drama puro. Momentos épicos e, principalmente, líricos, surgem ao longo de todo o filme. Da épica há a autonomia das partes, em uma progressão dramática lenta ou fraca, na qual algumas cenas remetem ao conceito de imagem-tempo elaborado por Deleuze. No caso, são imagens que se demoram, que não se esforçam em conter o início de o fim de um movimento, mas funcionam muitas vezes como estados de coisas, ou estados subjetivos (líricos). É possível, talvez, apontar um certo distanciamento épico, na medida em que com certa freqüência não nos identificamos com os personagens, nem somos espectadores de outro mundo possível, mas nos tornamos espectadores críticos, relacionando este mundo com o nosso, sem embarcar totalmente nas emoções propostas. Ainda puxando para a épica, a estrutura que, inicialmente, não parece convergir para um ponto, que funciona mais como uma escolha (por um narrador) de momentos a serem narrados. Aqui, pode-se dizer que uma das características mais presentes no filme - o fato de os diálogos servirem muitas vezes como comentários da situação principal, assim como as tramas paralelas, ainda que como digressões, também o fazem - ajuda a manter uma certa unidade de ação ou, mais precisamente, de tema.
O mecanismo dramático é também interrompido pela intercalação de cenas “de repetição”, ou leit-motifs (como Amália passando a mão pelas paredes), que ora salientam o tema ou o conflito, ora revelam algo das personagens. Há também cenas que funcionam como respiro ao drama, ainda que fortaleçam, a partir de tramas secundárias ou momentos subjetivos individuais, o tema (ou unidade).
Em relação à presença da Lírica no drama, em primeiro lugar é preciso salientar que o filme como um todo, e principalmente a maior parte dos diálogos, não se dão à apelação entre os personagens, mas sim à sua expressão. Não há grandes conflitos em jogo entre eles, mas sim conflitos internos que provocam situações de desconforto ou de crise. Isso fica mais forte pelo fato de as informações a que os personagens têm acesso serem controladas, nem sempre dadas. Chega-se ao final do filme sem que a mãe (Helena), ou a família do médico (Jano) saibam do que aconteceu, da situação principal. E a missão, ou vocação, que a menina diz ter descoberto, não fica clara nem para o espectador, restando as possíveis interpretações. Nesse sentido, é possível apontar (com cautela) uma certa desconsideração do ouvinte, em busca da auto-expressão, traço característico do canto lírico. Numa estrutura dramática clássica, seria inconcebível considerar um personagem, ou herói, cuja motivação não conhecemos.
É possível considerar que há, sim, um esqueleto de estrutura dramática clássica: uma apresentação, ou equilíbrio (cenas iniciais), e então algo acontece, uma situação dramática inicial, um chamado à ação (a menina é molestada), e segue o desenvolvimento desse conflito, e sua ampliação (quantitativa) ou complicação. Porém, no momento em que estaria o clímax, há um certo relaxamento, um retardamento da ação decisiva ou resolução, ocorrendo pequenas cenas emocionalmente fortes, intercaladas por outras nem tanto. Aqui, inclusive, o conflito muda qualitativamente (sem ser propriamente um ponto de virada, acredito) – deixa de ser a relação entre Jano e as mulheres e passa a ser a possível descoberta, por todos, dessa relação. E o final pode ser considerado aberto. Ou seja, nem conflito não é resolvido, nem as coisas voltam ao equilíbrio inicial – ao menos não no tempo do filme, ficando apenas a sugestão do que vai acontecer e de um certo equilíbrio na amizade entre as meninas (que pode também ser quebrado, por sua insuficiência). Pode-se perguntar, inclusive, se o filme não termina antes que o clímax que corresponderia ao conflito possa acontecer.
Há, no filme, uma organização temporal unívoca, mesmo que dilatada: o diálogo (além da mise-en-scéne) se ocupa muitas vezes de engendrar o futuro. São inúmeros implantes (de assuntos, principalmente) que justificam certas soluções da narrativa ou ações das personagens (como o interesse de Jano, a princípio descabido, sobre o fato de Helena ter sido ou não atriz) e antecipações (algumas sutis, como o fato de, antes de Jano e Amália se encontrarem, logo no início, o assunto “sexo” já ter surgido para eles, separadamente), ou ainda antecipações que mais parecem sugestões, como fato de o tio de Amália salientar sua beleza e semelhança com a mãe, de forma que supomos que Jano poderá participar com elas num triângulo “amoroso”. Outra coisa que aponta para o futuro, ou cria uma progressão, de forma que o espectador seja envolvido, são perguntas que surgem em uma cena, como uma informação omitida ou confusa, e que serão respondidas algumas cenas mais tarde. É o caso, entre vários outros, da cena em que Jano pergunta a Helena se ela era trampolinista, e não sabemos por certo se ele a conhecia e lembrava dela, se a investigou ou se adivinhou essa informação. Isso será respondido/confirmado mais tarde.
Sobre as personagens, algo que chama atenção é o uso de contrastes para caracterizá-las, como no caso do médico que divide o quarto com Jano. Sendo ele extremamente desinibido e extrovertido, parece-nos que Jano é ainda mais reservado. E é interessante notar que, no final, o contraste entre eles se anulará pela semelhança de atitude em relação às mulheres e famílias, ou ainda à ética da profissão.

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